Sobre minha paixão pela Turquia (Ou: da origem de todas as coisas)

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Tecelã, Capadócia

Sempre soube que conheceria a Turquia. Antes mesmo de ter discernimento para saber o que é um país, ouvia minha mãe se referir a ela. Seu pai, Henri Baruch Sonsol, judeu, havia nascido em Esmirna e  emigrado para o Brasil na década de 1920. Cidadão francês, já que era filho de franceses que tinham se mudado para a Turquia para plantar figo e enviá-los para a França, nasceu ali até vir para o Brasil, motivado por fatos importantes da nacionalização do estado turco, promovida por Ataturk, que nesse processo foi responsável por expulsar os estrangeiros do país. Conheceu minha avó, natural de Pacoti, Ceará, e se desgarrou do resto da família, que preferiu o Rio de Janeiro para viver.

Escutei relatos extraordinários e curiosos sobre ele a vida toda. Falava nove línguas: francês, turco, grego moderno, grego antigo, espanhol, italiano, português, hebraico e mais uma, que minha mãe acredita que fosse aramaico, mas pelo contexto, é mais provável que ele falasse ladino. Já podia parar por aí. Mas, como se não bastasse, era ambidestro, pois havia sido educado numa escola militar francesa em Saint-Cyr, onde todos deviam aprender e a escrever com as duas mãos, para o caso de perder uma delas em prováveis guerras. Era também profundo conhecedor de literatura francesa e de filosofia. E para os apaixonados por viagens, como eu, possuía um passaporte emitido pelo Império Otomano (capa preta, um crescente em alto relevo, caracteres de um alfabeto extinto, uma coisa formidável guardada até hoje como relíquia pela minha mãe).

Rosário islâmico de oração, Goreme

Infelizmente, sou a única neta que não o conheceu, pois ele já havia falecido quando nasci. Mas meus irmãos, minha mãe e minha Tia Avó Nair diziam que ele era reservado, boníssimo e  (*) tinha uma relação pitoresca com o dinheiro (como muitos que tiveram suas vidas salvas pelo que possuíam e, em algum momento, precisavam reconstruir suas vidas ). Por todas essas razões, a Turquia sempre ocupou meu imaginário e foi objeto de muita curiosidade de minha parte. Uma relação quase atávica, ligada a minha ancestralidade. Do meu avô, herdei o gosto e a facilidade para aprender línguas e a absoluta ojeriza a frutos do mar. Coisa de sangue, inexplicável.

Igreja Chora

Igreja Chora, Istambul

Outras familiaridades, só descobri quando fui avançando para o Oriente: primeiro, Croácia, depois Turquia, me mostraram que uma receita familiar, só vista antes dentro de casa no livro de receita da minha mãe, podia ser encontrada em cada esquina: as deliciosas burekas, que provei uma só vez, mas cuja sonoridade do nome me era tão familiar constavam dos cardápios das lanchonetes mais simples desses países. Somente isso já me trouxe uma alegria genuína ao andar pelas ruas desses lugares.

Bairro judeu, Izmir

Mas o que eu só iria descobrir quando pusesse os pés na Turquia é que ter sua ancestralidade ligada a esse lugar não era exclusividade minha. O que dizer de um país cujo território guarda elementos ligados à religiosidade cristã, como o Monte Ararat, onde, diz a Bíblia, ficou a Arca de Noé, ou que tem como ponto de visitação as cavernas onde se escondiam os cristãos do século I ou, ainda, o local onde viveu e morreu Maria, a mãe de Jesus? Você nem precisa ser religioso para reconhecer e se sentir íntimo dos lugares mencionados: Ephesus, Capadócia, Monte Ararat, entre outros que, quando citados, me fizeram rememorar histórias ouvidas no Colégio Santo Inácio, onde estudei durante 10 anos.

Ruínas, Ephesus

Essa familiaridade é o elo ambivalente que me une à cultura local. A Turquia também é estranheza, curiosidade e, por isso, aprendizado.  A história do meu avô está completamente entrelaçada com a história da Turquia, por motivos que só compreendi quando a visitei. Começando por Istambul, tudo lá se chama Ataturk, do aeroporto a avenidas importantes. O que eu não sabia é que Ataturk era o mesmo Mustafá Kemal Pashá, responsável por ter perseguido os estrangeiros, tomado suas terras e os expulsando do território turco, como minha mãe narra com certo ressentimento.

Ruínas, Hierápolis

Através da evolução geográfica e histórica da Turquia, compreendi fatos curiosos que minha mãe contava. Como uma vez, em que tocaram a campainha de sua casa na Rua 24 de Maio, no Centro, atrás do meu avô, para servir como tradutor de um médico que estava sendo chamado ao porto. O médico deveria atender uma urgência em um navio grego: o marinheiro urrava de dor. Com a ajuda do meu avô conseguiram descobrir que o pobre coitado estava enfrentando uma dor de barriga daquelas e ao final, agradecido, virou para o meu avô e disse que ele “falava como um grego”. Isso não fazia o menor sentido pra mim, até visitar Bodrum e Kusadasi, no Mar Egeu, e perceber que aquilo ali tudo só podia mesmo ter pertencido a uma mesma nação. Havia uma clara identidade, era tudo a cara da Grécia (questão de perspectiva, a turística Grécia habita desejos viajísticos da humanidade ocidental há mais tempo)!

Skyline, Izmir

Linda imperdível, única. Claro, era tudo Império Otomano no passado, por isso o grego era uma língua nativa para o meu avô. O Império Otomano é uma Pasárgada, um Macondo, uma Shan-gri-lá, uma Lilipute, um verdadeiro País das Maravilhas, com a diferença que aquele você pode visitar e perceber com os próprios olhos a identidade que une os dois países. Não estou obliterando a guerra entre a Turquia e a Grécia, mas só assim faz sentido mencionar Halicarnasso, Éfeso, Mileto, Tróia, Hierápolis e Mármaris e NÃO pensar na Grécia. O turista que se larga até lá descobre que todas ficam na Turquia.

Pôr-do-sol, Izmir

Eu estive, claro, em Izmir, mesmo ela não fazendo parte do roteiro turístico mais comum. Entendi o porquê de tantos membros da família terem ficado no Rio de Janeiro (onde mais eles encontrariam, no Brasil, um recorte tão lindo de mar e montanhas?!). Vi o bairro judeu, com suas ruas estreitas, suas casas de pedra e sua antiga sinagoga. Sabia que estava andando por ruas que meu avô pisou. Mas o que mais me emocionou foi o pôr-do-sol visto da sua orla. Meu avô teve que dizer adeus à terra em que viveu sem olhar para trás. Penso até hoje na tristeza que ele devia sentir por nunca mais ter podido olhar aquele pôr-do-sol, tentando gravar na memória os cheiros, os sons e o que mais a minha memória permitisse. Até o dia em que eu voltar lá.

O sol se despede, Izmir

 

* Faço aqui uma reflexão motivada por um comentário no blog: retirei a expressão “um judeu típico em sua relação com o dinheiro (como não!)” desse trecho por soar um tanto quanto preconceituosa. Peço desculpas a quem tiver se sentido ofendido.

Você pode deixar um comentário, ou trackback do seu site.

42 Responses to “Sobre minha paixão pela Turquia (Ou: da origem de todas as coisas)”

  1. Mari Campos disse:

    Que gostoso saber da sua história de família, Lili! Lindo post, viu? e a Turquia… ah, a Turquia! quanta saudade…

  2. Majô disse:

    Que linda história Lili e que lindo post, Lili. Me emocionei. Seu avô certamente guiou você por aquelas ruas nas cidades da Turquia

    • Liliane Sonsol disse:

      Tive essa sensação, Majô, por mais que as cidades sejam modernas, o bairro era todo muito preservado, difícil não acreditar que ele estava por ali…

  3. Carmem disse:

    Que fotos! Que história!
    Amei!

  4. Marcie disse:

    Que delícia de texto, querida! Adorei saber mais da história de sua família. Como curiosidade: meu pai falava 11 idiomas antes de tentar aprender o Português. Tentar… :-)

    • Liliane Sonsol disse:

      Impressionante, né, Marcie? Somente quando a gente viaja e tenta recriar, pelo menos mentalmente, as condições em que eles viviam é que conseguimos imaginar a possibilidade de se falar tantas línguas! Que vida rica o seu pai deve ter tido, não?

  5. Lucia Malla disse:

    Esse post… de uma lindeza sem fim!!! Emoção pura… que delícia! :)

  6. eva disse:

    Liliane,
    Emoção pura!
    Em outro continente e epoca, já vivi isso. Parabéns pela competência em “imprimir” sentimentos.

  7. Carla disse:

    Que texto lindo e emocionante, Lili! Que história linda a do seu avô – que certamente se sentiria muito orgulhoso da neta que resolveu refazer os seus passos em sua terra natal… Adorei ler – obrigada por compartilhar! ;-)

  8. Quenia Maia disse:

    Liliane
    Que lindo post! Amei.
    Obrigada

  9. Natália Andrade disse:

    Lili,
    Estou emocionada!
    Lindo demais! É fechar os olhos e imaginar os lugares por onde seu passou…
    Parabéns!

  10. Renata disse:

    Lindo post! Estive em Izmir durante uma semana em um congresso, ano passado. Fui a todos os lugares citados, com exceção do bairro judeu, e foi uma viagem inesquecível, onde também fui para Capadócia e Istanbul…

  11. Ernesto, o pato disse:

    Uma bela declaração de amor. Adorei!

  12. rubens werdesheim disse:

    “… e um judeu típico em sua relação com o dinheiro (como não!)….

    dureezaaaaaaaaaaaaaa

    haja preconceito…..

    que um dia isso acabe.

    • Liliane Sonsol disse:

      Rubens, concordo com você no que se refere ao preconceito, no meu caso não é preconceito, é conceito formado dentro da família, mesmo, alguns comportamentos caricatos se repetem muito. Não sou assim, mas consigo entender que vivenciar guerras pode fazer isso com pessoas que tiveram suas vidas salvas por suas economias.

  13. Taís Matias disse:

    Simplesmente amei !
    Ao ler parecia que estava andando pelos locais com você !

  14. Igor disse:

    Liliane,
    Lindo relato que realmente emociona. Deve ter sido uma sensação muito boa reconhecer lugares que sempre ouviu falar e estava apenas na esfera da imaginação. Amei amei amei!

  15. Karina (@nina_fego) disse:

    Que lindo texto! E que divino ter a chance de fazer uma viagem tão significativa como essa. A Turquia é mesmo uma nação apaixonante…eu sou suspeita, resolvi chamar o pais em casa…mas lamentavelmente tiveram esse histórico de expulsar os “estrangeiros”. Por mais que tenha sido em prol de um bem maior, como eles defendem, vidas e relações foram sacrificadas. Que bom que seu avo teve a chance de reconstruir a vida no Brasil, que só teve a ganha com o novo ilustre morador :-)

  16. Augusto C disse:

    Liliane,
    Impressionante, tive estas mesmas sensações quando visitei a Turquia.
    Sou judeu, mas meus antepassados não têm relação com este país.Mas por algum motivo aquele país me atraía de modo iresistível até eu conhecê-lo.
    Agora vejo que este sentimento é compartilhado por muitas e muitas pessoas.
    Abraços.

  17. Vi todo mundo comentando e elogiando seu post e só hoje pude vir conferir. Vi que não foi à toa. Um texto lindo e sensível! Uma viagem linda, cheia de história e sentimento. Também amei!

  18. Melissa Guará disse:

    Liliane, que texto emocionante! Me fez lembrar da Turquia, do seu povo, do meu avô, do por do sol e de alguns como esses da foto que marcaram minha memória… Lindo, lindo, lindo! Parabéns pela habilidade com as letras.

  19. gabebritto disse:

    Torço muito para que seu avô possa ler isso em qualquer lugar além da nossa compreensão. Lindo. Parabéns pela viagem. =D

  20. Lu Malheiros disse:

    Lili,
    Texto lindamente escrito e carregado de emoção, como não poderia deixar de ser dado o contexto. Que história bonita! Obrigada por compartilha-la conosco.
    Um carinhoso abraço

  21. Lindo relato que realmente emociona.

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